domingo, 16 de abril de 2017

PRA ONDE O SENHOR VAI?

Lembranças do passado que permanecem guardadas na memória...
Incandeia, gigante, incandeia os sentidos da aurora retumbante, incendeia os sentimentos reprimidos porque vivi em um tempo de glória, deixando explodir de momento, e agora relembrando os tempos da infância idade em que as crianças são curiosas, as coisas, as pessoas, os animais, as plantas, enfim, não tinha nada que passasse despercebidas das suas visões de raio x e nem dos seus ouvidos apurados, também naquela época quase não existia a tecnologia, o telefone residencial só servia para quem tinha poder aquisitivo maior e na capital, e no interior televisão para o pobre nem pensar, um bicho de sete cabeças, luz elétrica alguns tinham nas suas casas, outros não porque ultrapassava as despesas, então à noite acendiam-se os candeeiros a vontade, e no verão os pais estendiam as esteiras nas portas das casas para prosear com os vizinhos, nas ruas não existiam calçamento, via-se muito barro, areia, buracos e quando chovia a meninada fazia festa na lama e depois corria para tomar banho nas biqueiras das casas, podia-se brincar livremente de boto, casinha, esconde-esconde, bola na mão e no pé, cantar nas rodas de cirandinha, sentar aos pés dos mais velhos e ouvir as suas história mirabolantes, faz de conta e muito mais, porém quando a criança se tornava maluvida, ou seja, teimosa, a mãe gritava,- Lá vem o Beleza! Ou então, - Olha o Chupetinha aí! Caramba, não ficava ninguém na rua, cada um procurava a sua casa. Beleza e Chupetinha foram duas figuras folclóricas que realmente existiram, passavam nas ruas regularmente, entretanto não mexiam com ninguém, a não ser que algum moleque dissesse alguma coisa errada, então vinha o xingamento do outro lado, mas naquele tempo os pais faziam tanto medo aos filhos que eles cresciam acreditando que os referidos senhores pudessem fazer algum mal, e isso nunca foi verdade, só vimos perceber essas coisas após a maturidade, o primeiro andava todo sujo, roupa velha, rasgada, um saco pendurado nas costas cheio de tranqueiras que encontrava nas ruas, e não deixava de carregar no ombro um feixe de lenha, ele tinha uma barba comprida e esbranquiçada que descia até a cintura, usando na cabeça um chapéu muito velho, já o Chupetinha, um homem de certa idade andava com uma chupeta na boca, dizem que ele era ruim das ideias, e até hoje nunca soube os seus verdadeiros nomes sem falar na mulher que servia de guia para um cego pedir esmolas, e se por acaso ela parasse, ele falava, - Olha, o sirviço, Lurdes! Também tinha a “Maria Topada” que metia medo e uma vez encontrando com ela cara a cara quase morri de susto, nem sei como consegui retornar para casa, só sei que tremia muito e não me aguentava nas pernas, agora existia um cidadão por alcunha de “Zé Aleijado” que quando ouvia pronunciar o nome dele eu tapava as orelhas, e por incrível que pareça até hoje sinto arrepios no peito, o pobre homem já nascera defeituoso do corpo, era um exímio sapateiro e a varanda da sua casa servia de budega, e de parada dos viajantes que chegavam das redondezas, montados em cavalos, carroças, carros de boi, etc, porque ali eles amarravam os seus animais, ingeriam um gole de pinga e saiam para comprar mercadorias na feira livre, depois retornavam, pegavam os seus animais e iam embora como chegara, e naquela época para ir à escola mais próxima só tinha duas opções, uma mais rápida na frente da casa do senhor acima referido e a outra, tinha que passar por baixo de arames farpados, atolar os pés no lamaçal, atravessar plantações de capim até alcançar o prédio do grupo escolar, e esse era o caminho escolhido, vejam só o que o medo não faz com a gente. Muitas décadas depois, retornando ao lugar de origem, já refeito dos sustos, e numa noite de verão ele foi convidado para uma festa na casa de uma amiga a qual fazia anos que não a via pessoalmente, e nessa empreitada acompanharam outros dois amigos, e lá vai o jovem bem faceiro, acreditem ou não estancou no meio do caminho como um animal acuado porque tinha que passar na frente da casa do homem que lhe metia medo,  - Desisto, dusse ele, não vou mais para essa festa! - Ora, você chegou até aqui conosco e agora quer desistir, não vai fazer isso, estamos juntos, vamos embora! - Não tem quem me faça passar na frente da casa do “ seu Zé Aleijado”! - Ah, é isso! Então você não soube, o homem faleceu há muitos anos, responderam os amigos, derrubaram a casa dele, veja, apontaram com o dedo, hoje o local agora serve de entrada para chegar até aquele condomínio, e nós pensávamos que você já tinha superado os seus medos da infância. - Ledo engano, falou, alguns consegui superar sim, há muito custo, mas esse estava adormecido e agora acordou a todo vapor, mesmo assim os amigos o agarraram pelo braço, então resolveu fechar os olhos e atravessear a avenida, porém até hoje não passou mais lá, pelo menos sozinho, segundo ele, mas deixando os “entretantos”, retorna ao local de onde parou, pois bem, quase todas as noites eu saia ao encontro de amigos para nos divertimos um pouco e num determinado endereço, fazia questão de parar, pois o senhorzinho quando me via ficava alegre e me convidava para ver a televisão nova que comprara, e ele dizia assim, - Entre pra dento, meu fio, simbora vê o jorná qui já devi de tê começado, vô ligá no canaro sete pra mode vê se num tá fora do aro, eu ficava alegre com o convite feito, entrava e me sentava em um enorme sofá de madeira, então ele ligava a televisão que chuviscava muito e sentava-se ao lado numa cadeira de balanço bem antiga, mesmo assim ouvia o repórter dizer, - Boa noite! - Boa noite meu amiguinho, respondia o senhor, aquilo era inusitado, e eu não perdia a oportunidade de ver uma cena tão inusitada, seu Januário fazia questão de responder o boa noite do repórter. - Meu fio, dizia seu Januário, ele mim cunhece já fais muitos anos, e toda noite me comprimenta! - Ah, tá certo, eu respondia, pois não era doido dizer o contrário, e nessa mesma pequena cidade do interior morava outro senhorzinho, magrela, viúvo, cabelos branqueados pelo tempo, brincalhão com as pessoas, de bem com a vida, e uma vez por mês, saia de casa todo engomado para resolver negócios pendentes, desfrutando da companhia da sua filha mais nova que o acompanhava, os vizinhos, quando o viam arrumado, perguntavam, - Pra onde o Senhor vai? Ele respondia empolgado, - Ara, vô buscá o meu carneiro do inapecite! Na realidade, o referido senhor saia em busca do carnê do INPS-Instituto Nacional da Previdência Social hoje, INSS-Instituto Nacional do Seguro Social, porém ele estava aposentado e nem precisava do referido carnê. Lembrei também do “Pisa na Fulô”, homem trabalhador, alegre, alto, careca, gordo e barrigudo, que aos domingos vestia o seu terno preto, impecável, botava a bíblia embaixo do braço sem esquecer o guarda chuva preto o qual servia de bengala e seguia para a igreja, tinha um andar engraçado que as crianças conseguiam imitar direitinho, e eu, claro, era uma delas, por isso não perdia a oportunidade de imita-lo, ainda bem que ele não ficava incomodado com as imitações, pelo contrário, ria muito alto e nos incentivava, e por falar em igreja, disse ele, naquela época os vestidos das mulheres eram rodados cobrindo até o calcanhar e assim elas participavam das missas campais e acompanhavam as procissões, gostavam de sentar na praça, nossa, eu, muito moleque, juntava-me com os outros e amarrávamos as pontas das saias uma das outras e quando elas se levantavam não conseguiam andar direito e algumas até tropeçavam, sem falar que estavam cantando o “bendito louvado seja”, aí elas aproveitavam a deixa e nos davam a resposta certeira, - Mininos, fios duma égua, vão amarrar a saia da sua mãe, e sem perderem a classe continuavam a ladainha do bendito, coitadas das nossas mães que jamais desconfiaram das nossas travessuras feitas em cada esquina com direção certa, mas chegamos á maturidade propriamente dita, e cada um de nós tomou consciência de que é preciso olhar a vida de outra maneira, sem deixarmos de lado as alegrias do distante passado que permanece na memória. Após anotar no caderno a história do meu amigo Juca, agradeci imensamente por ter sido o escolhido para fazer esse conto.  


Escritora Mj, em 16/04/2017

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